Falta lógica e coerência à contratação por pregão

Por Carlos Roberto S. Mingione*

Texto originalmente publicado no jornal Valor Econômico, edição de 14 de novembro de 2019

Em 30 de agosto passado, perdeu a validade a Medida Provisória 882, de 3 de maio de 2019, que, entre outras mudanças, instituía o processo de colação para contratação de serviços técnicos profissionais especializados para estruturação de contratos de parceria e de medidas de desestatização. Ainda segundo a MP, seriam integrados ao Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) as obras e os serviços de engenharia considerados de interesse estratégico e as políticas federais de fomento às parcerias em empreendimentos públicos de infraestrutura dos Estados, do Distrito Federal ou dos municípios.

Na exposição de motivos da referida MP consta que o processo de colação foi criado com o objetivo de desenvolver alternativas para atender às necessidades públicas e inauguraria na legislação um instrumento moderno e eficiente de seleção de estruturadores de projetos.

Membros do governo afirmaram que a instituição do mecanismo da colação permitiria fazer melhores contratações, e que face à demanda grande de projetos, teria condições de contribuir muito para destravar investimentos e gerar renda e empregos para os brasileiros.

E qual a novidade contida na MP 882/2019, que possibilitaria a esperada melhoria?

A MP estipulava que a seleção e contratação do suporte técnico para elaboração dos projetos seria, preferencialmente, com critérios de julgamento de melhor combinação de técnica e preço ou de melhor técnica. Conforme afirmaram seus defensores: Poderiam carregar mais no critério técnico em detrimento do preço.

Menos de um mês após a perda de validade da Medida Provisória, em 17 de setembro, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto que versa sobre a Nova Lei de Licitações, o PL 1.292/95.

Em sintonia com o previsto na Medida Provisória, o projeto de lei estipulou que serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual – estudos, projetos, gerenciamento, supervisão, fiscalização e controle tecnológico das obras -, deveriam ser contratados, preferencialmente, com critérios de julgamento de melhor técnica ou técnica e preço, complementando com a obrigatoriedade dos referidos critérios de julgamento nas contratações acima de determinado valor.

Também com vistas à melhoria da qualidade dos projetos e dos empreendimentos públicos, o PL 1.292/95 vetou a utilização do pregão (licitação por meio de lances sucessivos – leilão reverso) nas contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, obras e serviços de engenharia.

Mais recentemente, no dia 20 de setembro, apenas três dias após a conclusão da tramitação do PL na Câmara, o governo federal publicou o decreto 10.024, regulamentando a licitação na modalidade pregão, e incluindo a permissão para contratação de serviços comuns de engenharia.

Se hoje em dia, enquanto a legislação vigente permite a adoção do pregão apenas para a contratação de serviços comuns, sem mencionar serviços de engenharia, cerca de 50% das licitações para contratação de projetos, supervisão, fiscalização e controle tecnológico das obras são realizadas por pregão. Com o decreto presidencial, a tendência será de um incremento vertiginoso do uso desta modalidade.

Onde ficou o interesse em priorizar a técnica em detrimento do preço?

Onde está a coerência com relação às medidas para aquisição de projetos com mais qualidade?

Ou será que apenas os projetos que envolvem parceiros privados ou concessões são merecedores de um processo de seleção com critérios que priorizem a técnica e a qualidade?

O decreto nº 10.024 contraria a lógica embasada nas opiniões expressas pela quase totalidade das entidades, associações, conselhos e órgãos de classe da Arquitetura e Engenharia, e pior, contraria a própria lógica propagada pelo governo federal.

Somente é possível adotar o pregão quando a administração souber concretamente o que lhe será fornecido.

Entretanto, elaboração de projetos, gerenciamento, supervisão, fiscalização e controle tecnológico de obras são serviços essencialmente técnicos, de natureza predominantemente intelectual e representam trabalhos de concepção, decisão e execução futuras.

Trata-se de produtos de natureza singular, que dependem intrinsecamente da formação, da atualização técnica e tecnológica, da experiência e do conhecimento específico do objeto que possuem os profissionais alocados para a prestação do serviço, bem como da estrutura organizacional, dos recursos, da expertise, dos controles de processos e da capacidade de aglutinação, gestão e coordenação da empresa que congrega os profissionais em questão. Portanto, não são produtos de prateleira, ou seja, por depender destas inúmeras variáveis estes serviços são únicos, exclusivos, não são repetitivos, e não há como padronizá-los.

Pode-se estipular normas, diretrizes e parâmetros que são balizadores da execução de um trabalho técnico de natureza intelectual, mas o produto final depende da atuação individual e em conjunto dos profissionais envolvidos, que terão a missão de detectar, entender e caracterizar o problema ou a demanda específica, identificar as alternativas de solução, comparar e selecionar a opção que se apresente como a mais vantajosa sob os diversos pontos de vista, tais como: técnico, econômico, financeiro, ambiental, social.

E dependendo dos profissionais alocados poderão surgir soluções com eficiência e eficácia distintas. Neste sentido, a contratação de um serviço deficiente ou ineficaz além de poder acarretar custos superiores de execução ou implantação, operação e manutenção, poderá colocar em risco a eficiência, a qualidade, a durabilidade e a segurança do produto.

A contratação de serviços desta natureza realizada por pregão não possibilita a correta avaliação dos licitantes, do que eles entendem que devem fazer e do que eles pretendem entregar, pondo em risco o sucesso da contratação e podendo gerar pesados prejuízos ao contratante ou à sociedade.

Até quando teremos que conviver com infraestrutura deficiente, precária, com pontes e viadutos caindo, barragens se rompendo, prédios desmoronando?

Pregão é uma modalidade que possibilita a contratação de arquitetura e engenharia de má qualidade, pelo menor preço.

Desta forma, nunca iremos reverter a atual realidade dos processos para implantação de empreendimentos públicos, que apresenta milhares de obras paralisadas, ou entregues com qualidade aquém da desejada ou por preços acima dos contratados ou em prazo muito além dos esperados.

(*) Carlos Roberto S. Mingione é engenheiro e presidente nacional do Sinaenco

Foto da capa: Tiago Alves|Unsplash