Para ser útil a toda a sociedade
Cidades não se fazem apenas com o excepcional. É no conjunto dos espaços vividos que se compõe parte importante de nossa subjetividade
Por Sérgio Magalhães*
Em meio ao turbilhão de más notícias, há exceções. O edifício do Museu do Amanhã, de autoria do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, recebeu prêmio internacional por sua relação com o meio ambiente. O Museu de Arte Moderna do Rio abriga exposição sobre a magistral obra do arquiteto catalão Antoni Gaudí. Obras de Oscar Niemeyer em São Paulo foram tombadas como patrimônio.
Gaudí, Niemeyer e Calatrava são excepcionais arquitetos e produziram obras também excepcionais. As obras de Gaudí foram concebidas no início do século passado em estreito diálogo com a modernidade catalã. Grande parte da obra de Niemeyer foi erguida na perspectiva inovadora que o modernismo representava, como compreendeu JK ao contratar os edifícios da Pampulha e de Brasília. Calatrava apoia sua obra na exuberância formal com viés tecnológico, como sua sinalização de futuro.
Obras excepcionais servem de referência para a identidade coletiva. Mas as cidades não se fazem apenas com o excepcional. É no conjunto dos espaços vividos que se compõe parte importante de nossa subjetividade. Contudo, há bons e maus espaços. Bons espaços se fazem de variados materiais, formas e procedimentos — mas, indissociavelmente, como dizia Lucio Costa, se fazem quando há uma nobre intenção.
Da simples casa ao complexo hospital, do bairro à metrópole, a vida que abrigam merece o melhor ambiente, o mais cuidadoso trabalho, a mais harmoniosa relação entre espírito e matéria que as circunstâncias possam permitir. Nada menos deve nos satisfazer.
Seja de Gaudí, Niemeyer, Calatrava ou de outros arquitetos — e mesmo de autoria anônima, nenhuma obra que nos encanta foi produzida sem uma ideia propulsora; é esta ideia que estrutura um projeto, o qual se materializa em construção.
Nosso país construiu vertiginosamente nas últimas seis décadas. E ainda construirá nesta geração mais do que em qualquer outra. Quando se constata quão difícil está o nosso cotidiano urbano, pode-se avaliar quanta potencialidade foi desperdiçada ao se fazer nossas cidades à margem do planejamento e sem projeto. Quanto se gastou de modo irresponsável porque se escolheu construir sem atenção às desigualdades intraurbanas; quanto se gastou exageradamente porque se contratou a obra diretamente à empreiteira, sem a mediação do projeto completo elaborado antes da licitação.
Infelizmente, todo dia maus exemplos são atestados. Há pouco, o Tribunal de Contas informou que a reforma do Maracanã dobrou de preço por falta de projeto completo. Pelo mesmo motivo, a linha 4 do metrô gastou bilhões além da conta, segundo o tribunal. Perdemos oportunidade de ouro com a joia das obras olímpicas: os bilhões além da conta dariam para transformar em metrô as linhas de trens suburbanos. Isto é, o metrô que reduziu o tormento diário de cem mil passageiros, na Barra, poderia ter também alcançado oito milhões de moradores das zonas Norte, Oeste e da Baixada.
A arquitetura serve para fazer melhor a vida das pessoas. Ela valoriza a inovação e a excepcionalidade — mas não se basta nelas. Para ser útil a toda a sociedade, é preciso que o espaço seja pensado permanentemente, seja planejado, e que as obras sejam fruto de projetos bem feitos.
Cada prêmio de arquitetura, cada exposição, cada obra tombada como nosso patrimônio devemos recolher como estímulo para a revisão dos procedimentos irresponsáveis com que o território brasileiro está sendo malversado espacialmente. Muitos novos Gaudís, Niemeyers e Calatravas poderão vir a contribuir para um país menos desigual e ainda mais bonito.
O turbilhão de más notícias viraria brisa amena.
*Sérgio Magalhães é presidente nacional do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).
O artigo foi publicado na edição de sábado, 25 de março, do jornal O Globo.