Está na hora de uma Operação Lava a Lei de Licitações

Por Haroldo Pinheiro*

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À medida em que são divulgadas as operações da Polícia Federal, delações premiadas dos executivos das grandes empreiteiras e as ações do Ministério Público contra a corrupção, surgem novos elementos que entrelaçam a Operação Lava Jato com a Lei de Licitações, com impactos negativos não apenas para os cofres públicos, mas também na qualidade do espaço urbano e da infraestrutura do país.

Em 19/04/17, o site do jornal “O Estado de S.Paulo” publicou a matéria “Delator se rende à Lava Jato e sugere a procuradores ‘ataque’ à Lei de Licitações”, em que o executivo da Odebrecht Valter Lana sugere aos procuradores: “Além do trabalho que vocês estão fazendo, têm os trabalhos da Lei de Licitações que vocês deveriam se aprofundar, são fundamentais para evitar esses problemas que aconteceram e que não voltem mais a acontecer”, disse ele, apontando a falta de um projeto executivo como um facilitador para os esquemas de propinas.

Poucos dias antes, o jornal “Folha de S.Paulo” publicou em 26/03/17 uma reveladora entrevista com engenheiro Ricardo Sena, presidente do Grupo Andrade Gutierrez, outra das grandes empreiteiras envolvidas em atos de corrupção flagrados pela Operação Lava Jato. Na matéria “Fomos pegos pelados no meio da rua, diz presidente da Andrade Gutierrez”, ele afirma abertamente que:

  1. Havia uma época “em que o empreiteiro dizia: o negócio é ganhar o contrato, depois nós damos jeito. E dava um jeito, de uma forma ou de outra, acertava. O governador e o ministro tinham o poder da caneta”
  2. “A gente ganhou o contrato da Transcarioca e só tinha uma planilha. (…) Sabiamos que depois a obra ia ser outra coisa”.

E foi mesmo: o contrato para as obras a que ele se referia, do trecho 2 do BRT Transcarioca, era de R$ 542,8 milhões, mas o empreendimento custou R$ 790,6 milhões, de acordo com dados do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro. Na última semana (dia 4), um ex-secretário de Obras do Rio foi preso pela Polícia Federal na Operação “Rio, 40 Graus”, que apurou o pagamento de propinas de R$ 27 milhões nessas obras, além de mais R$ 9 milhões nas obras de recuperação ambiental da bacia de Jacarepaguá, ambas de responsabilidade de consórcio integrado pela Andrade Gutierrez.

O assunto ganha maior importância no momento em que tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6.814/2017 que trata da revisão da Lei de Licitações. Aprovado pelo Senado em dezembro de 2016, o documento é objeto de críticas unânimes das entidades de Arquitetura e Urbanismo do país, além de outras da Engenharia, por abrir brechas para que obras acima de R$ 20 milhões – uma escola de médio porte ou um pequeno hospital, por exemplo – sejam contratadas com base apenas em anteprojetos, peça técnica insuficiente para tal finalidade.

Valem aqui algumas explicações técnicas. São cinco os passos do planejamento de uma obra pública: identificação das necessidades, estudos de viabilidade (técnica, econômica e jurídica), anteprojeto, projeto básico e projeto executivo.

O anteprojeto caracteriza-se basicamente por uma visão global do empreendimento a partir do programa de necessidades e dos estudos de viabilidade. O projeto básico, por sua vez, deve conter os elementos que detalham, com nível de precisão adequado e suficientes, as obras licitadas. Ou seja, as especificações técnicas, o orçamento, o cronograma físico-financeiro e os cuidados ambientais a serem observados, de forma a possibilitar a avaliação dos custos da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução. O projeto executivo é aquele que transpõe para o canteiro de obras o projeto básico, com detalhamento das soluções de Arquitetura e Engenharia, materiais e equipamentos a incorporar ao empreendimento, de acordo com normas técnicas.

A atual Lei Geral de Licitações (8.666/1993) exige que Administração Pública só abra um edital para licitação de uma obra se houver um projeto básico pronto – e observem que mesmo isso já vem sendo demonstrado ser insuficiente. A partir de 2011, entretanto, alguns grandes empreendimentos passaram a ser licitados a partir apenas de um anteprojeto, com base na Lei 12.462, que criou o RDC (Regime Diferenciado de Contratações Públicas).

As delações premiadas têm confirmado o que o CAU/BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil), o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), a FNA (Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas) e o SINAENCO (Sindicato da Arquitetura e Engenharia Consultiva), entre outras entidades do setor, órgãos do próprio governo e o Tribunal de Contas da União vem demonstrando com insistência nos últimos anos. Ou seja: o RDC é danoso para o interesse público, como verificado em vários casos que impactaram os custos e prazos das obras de aeroportos, sistemas de transporte de massa, infraestrutura viária em torno de estádios e estradas país afora. Voltaremos ao tema mais adiante.

A “novidade”, contudo, tem sido a revelação de que em muitos casos tampouco o projeto básico vem sendo elaborado conforme exige a lei. Vejamos os detalhes.

Não raras vezes feitos na pressa, para cumprir uma mera formalidade, muitos deles deixam de atender aos requisitos, ficando vagos detalhes que posteriormente nos custam caro, pois motivam pedidos de aditivos pelas empreiteiras. O argumento comum é que a insuficiência de informações impediu a elaboração de uma matriz de risco completa, com estimativas de custos realistas, inviabilizando economicamente o negócio. Ou seja: por óbvio, com projetos “básicos” não se obtém custos e prazos “executivos” confiáveis.

Em 06/03/17, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro abriu ação civil contra os empreiteiros e agentes públicos envolvidos nas obras da reconstrução do estádio do Maracanã contratadas com as regras da Lei Geral de Licitações. Auditoria do MPRJ revelou que o consórcio de empreiteiras vencedor da licitação (formado pelas empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez e Delta Engenharia) foi contratado por R$ 700 milhões, mas as obras sofreram 16 aditivos e acabaram custando mais de R$ 1,2 bilhão. Principais razões apontadas pelo MPRJ: a falta de especificações do projeto básico das obras e a contratação do mesmo consórcio para projetar e reconstruir o estádio.

Entre os problemas técnicos que facilitaram as fraudes está a licitação da obra a partir apenas de 37 plantas arquitetônicas, número irrisório diante da complexidade do empreendimento. O estádio do Mineirão (em Belo Horizonte Minas Gerais), por exemplo, que também foi reformado, teve 1.309 plantas – 35 vezes mais do que o Maracanã.

A contratação de uma mesma empresa para projetar e fazer as obras também é questionada. “A elaboração do projeto executivo pelo contratado alarga sobremaneira o poder de direção técnica que o contratado exerce sobre a obra, o que pode facilitar uma indesejável manipulação dos insumos a serem empregados na fase de execução do contrato, em especial por meio de sucessivos termos aditivos”, argumentou com evidente razão a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, citada na ação do MPRJ.

No estádio Mané Garrincha, em Brasília, aconteceu a mesma coisa. Auditoria do Tribunal de Contas do DF mostrou, por exemplo, que a cobertura do estádio, contratada por R$ 173 milhões, custou R$ 72 milhões a mais. Uma das irregularidades apontadas foi a participação das mesmas empresas na elaboração do projeto básico e no fornecimento da cobertura. A diferença até que foi pequena diante do que ocorreu no empreendimento como um todo, incluindo obras do contorno: orçadas em R$ 600 milhões, elas acabaram custando R$ 1,5 bilhões, o que motivou recentemente a prisão temporária de dois ex-governadores do DF, de um vice-governador e do presidente de uma grande empreiteira. Só a obra do estádio em si teve 19 aditivos!

É possível, então, concluirmos que obras públicas de grande envergadura foram contratadas com base apenas em desenhos esquemáticos, como não raras vezes ocorre (também de forma incorreta) na aprovação de “projetos” de pequenas moradias junto às Prefeituras. Em outras palavras, o projeto básico exigido pela Lei 8.666/1993 passou a ser entendido, por empreiteiras e gestores públicos, como “projeto elementar”.

Falemos agora do RDC. A Lei 12.462, que criou o RDC (Regime Diferenciado de Contratações Públicas), inclui entre as modalidades de licitação a chamada “contratação integrada”, que – como foi dito – permite a contratação de uma obra pública com base apenas em um anteprojeto. A empreiteira contratada fica responsável pelos projetos básico e executivo, além da obra em si.

A princípio, a lei seria usada apenas para as obras da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos do Rio. No entanto, aos poucos, outras leis estenderam sua utilização também para obras do PAC, do SUS, de estradas do DNIT e desde o ano passado (Lei 13.303/2016) também para qualquer obra das estatais – como já vinha ocorrendo com a Petrobras desde 1998, com os resultados conhecidos.

Vários exemplos emblemáticos já foram citados, ao longo do tempo, para demonstrar o fracasso da modalidade. Entre eles, o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) de Cuiabá, contratado por R$ 1,4 bilhão, já custou R$ 1bilhão e pode consumir mais R$ 1,3 bilhões para ser concluído. A linha deveria ter 22 quilômetros de extensão e 33 estações. Mas até agora, só ficaram prontos 800 metros de trilhos, jamais rodados pelas 40 composições paradas no pátio. O esqueleto de terminal de passageiros foi transformado em abrigo de traficantes e usuários de drogas. (Ver “Secretário de Cidades apresenta relatório sobre VLT de Cuiabá” e “Diagnóstico Secopa-Governo do Mato Grosso”).

Mais recentemente, em janeiro de 2017, o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (CGU) deu a público auditoria que realizou sobre as obras do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), do Ministério dos Transportes. Foram avaliadas 155 licitações que o DNIT realizou entre 2012 e 2014, com um orçamento total de R$ 12,4 bilhões, utilizando os vários instrumentos do RDC.

Conclusão 1: 42% dos editais foram malsucedidos (ou seja, anuladas, revogadas ou suspensas)

Conclusão 2: se analisadas apenas as tentativas de “contratação integrada”, a taxa de insucesso aumenta para 44%

De acordo com a CGU, “o pior desempenho da contratação integrada já era esperado, pois além da maior transferência de risco, que, por si só, é um fator inibidor, há de se destacar que a orçamentação com anteprojetos é mais imprecisa, podendo gerar preços de referência irreais para as obras, sendo que, quando há uma subestimativa dos custos de referência, muito provavelmente haverá uma licitação fracassada ou deserta”. (Ver mais detalhes em 44% das licitações para contratação integrada são malsucedidas, diz CGU e na íntegra da auditoria).

Mais recentemente ainda, o acórdão 306/2017, de 22/02/17, do Plenário do Tribunal de Contas da União, que igualmente analisou as obras do DNIT contratadas com o uso do RDC, chegou a resultados idênticos. Segundo o relator Bruno Dantas, “79% dos empreendimentos fiscalizados pelo TCU apresentaram irregularidades no anteprojeto (entre as quais, destaca-se a insuficiência ou inadequação dos elementos para caracterizarem devidamente o objeto da contratação) e 64% no procedimento licitatório (a exemplo da inexistência dos pressupostos para a utilização da contratação integrada ou do regime de técnica e preço)”.

O relator destacou ainda “as constatações de atrasos na aprovação dos projetos e aceitação de projetos básico/executivo em desacordo com as premissas estabelecidas na licitação”, situações que neutralizam os argumentos de ganhos de prazo e eficiência decorrentes da contratação conjunta de projetos e obras. Mais precisamente: “a partir da análise do resultado de 33 fiscalizações em obras licitadas no regime de contratação integrada, constatou-se, de maneira reiterada, a ocorrência de falhas relacionadas a anteprojeto e licitação, o que sinaliza para a existência de riscos relativos a problemas na especificação dos objetos contratados e, consequentemente, na precisão exigida para que a contratação pública atinja sua finalidade de maneira adequada”.

Tudo isso, entretanto, não impediu o Senado de aprovar em 13/12/16 projeto de revisão da Lei de Licitações. O texto diz que nenhuma obra pública do país pode ser feita sem “projeto executivo”, mas, no entanto, libera o uso da “contratação integrada” para empreendimentos acima de R$ 20 milhões. (No Senado, o projeto tinha o número PLS 559/2013, na Câmara – onde o texto tramita agora – ele recebeu o número 6.814/2017). O relator e defensor da medida foi o senador Fernando Bezerra (PSB-PE).

Como visto, a “contratação integrada” é o caminho que leva inevitavelmente ao aumento dos custos, a diminuição da qualidade e à facilitação da corrupção nas licitações de obras públicas. No entanto, nossos parlamentares parecem indiferentes e marcham adiante no mesmo rumo.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil defende que toda licitação de obra pública seja feita a partir de um projeto completo, elemento fundamental para a qualidade e confiabilidade do planejamento, assim como para o controle do órgão contratante e dos Tribunais de Contas. Se o projeto quem faz é o empreiteiro, os parâmetros para fiscalização não serão dados pela Administração, mas por ele, que fica assim – como se diz – na confortável posição da raposa tomando conta do galinheiro.

Na verdade, está mais do que evidenciada a necessidade de uma lei específica para a contratação de obras públicas, projetos e trabalhos de natureza intelectual – aqueles que não são encontrados prontos nas prateleiras para verificação prévia à contratação e aquisição.

Por tudo o que vem sendo publicado como resultado dessas obras públicas contratadas sem projetos completos e entregues (quando entregues) após aditivos crescentes em preços e prazos, não é razoável crer que a insistência em manter e até ampliar os comprovados defeitos da atual Lei de Licitações deriva apenas da falta de conhecimento técnico ou mesmo de algum tipo de distração quanto a tantas más experiências acumuladas.

O Estado não pode fugir da responsabilidade de planejar, gerenciar e controlar a produção das cidades e da infraestrutura do país, de forma a servir da melhor maneira à população. A Operação Lava Jato nos oferece a possibilidade de entendermos de vez que, em obras públicas, quem projeta não constrói e quem constrói não projeta. Não podemos perder mais essa oportunidade.

*Haroldo Pinheiro é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR)

Este artigo foi publicado originalmente na coluna “Fausto Macedo”, do jornal “Estadão”, no dia 8/8/2017.
Foto: Divulgação/CAU-BR

 

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